Wednesday 12 January 2011

Memórias de um cárcere Vietnamita


Acordei numa prisão fétida no meio do nada, não era tão ruim quanto imaginava, creio por não estar tão cheia como as que costumei ver na tv em meu país. Pessoas me olhavam do outro lado do cômodo, hora com medo, hora em tom ameaçador. Já havia perdido a conta de quantos dias estava ali, poderia estar aproveitando as dunas lá fora, aquelas que um dia seguia passos de gente que haviam passado em direção ao mar, mar revolto e bonito que nunca imaginei ver daqueles lados e que vi de relance no caminho para a masmorra moderna.

Acendo um cigarro que teimo em tentar inalar e fazer todo o processo correto de fuma-traga-solta, mas me contento em mostrar aos colegas de cárcere apenas minha cara de mau, de alguém insano que poderia arrancar uma orelha numa mordida ou mesmo um nariz, capaz de tirar olhos com minhas próprias mãos, todo um teatro pra sobreviver nesse quarto privado da liberdade onde tanto acontece, em minúsculos cinco metros quadrados com sala, quarto, cozinha e banheiro incluso, e de graça... com tanta gente reclamando em pagar condomínio em seus luxuosos setenta metros quadrados nos quais convivem solitárias. Aqui não, compadre, aqui compartilhamos tudo. Alguns seringas, outros fotos de entes queridos, alguns poucos chegam até a trocar fluídos corporais e não é nada bonito tampouco convém, acredite.

A tremedeira de minhas mãos aumentam de acordo com os dias de insônia, passar a noite vigiando meu arredor virou rotina noturna, sonhos passam diante de meus olhos abertos, sonho com o sol ali naquelas dunas, logo ali, poucos metros depois do muro, pra lá do arame farpado, depois do poço fundo de água podre de esgoto e um pouco mais pra frente do canil onde deixam os cães que nos guardam.

Disseram tantas vezes que a cadeia era faculdade de ladrão e criminoso, o que será então dito dessa instituição no caso de um intercâmbio, onde ninguém fala minha língua, onde não entendo bulhufas do que falam, mesmo que grunhidos me soam, algum sentido deve ter, isso aprendi quando um dia depois de tanto gritarem algo incompreensível no corredor, sem respostas de lado algum, fui tomado de assalto e levei boas pancadas de um cabo de madeira na nuca, será que chamavam meu nome em mandarim ou japonês ? Será que ninguém os avisou de que pancada na nuca fica marca e aquele pessoal dos direitos humanos podem vir atrás em protesto ? Fiquei bem zonzo e mesmo assim não deixava de pensar em como explicar tudo isso para algum secretário da ONU... seria a ONU responsável por ouvir esse tipo de reclamação ? Talvez uma ONG qualquer, vai saber, vou ter que buscar nas páginas amarelas quando sair daqui, quero uns trocados como indenização.

Perdi a conta dos dias da semana, do mês, perdi a hora, senso de dia e noite, perdi a consciência algumas vezes fruto das pancadas dos carcereiros, hora pelas tragadas falhas no cigarro forte, hora por diretos de esquerda de um detento ex-pugilista, hora por intoxicação alimentar após ingerir aqueles purês amarelos os quais não temos a mínima idéia do que realmente são.

Estar inconsciente ajudou bastante no sentido de relaxar e dormir em paz, digamos que aquelas poucas horas de sono no chão do cárcere era praticamente um coma induzido, que vinha gratificante trazer paz aos meus dias, horas sem abrir os olhos, apenas deixando o tempo cicatrizar tantas marcas.

“Mama I just killed a man
Put a gun against his head
Pulled my trigger, now he's dead”

Não foi o caso, não matei ninguém, mas essa música não me saía da cabeça, deve ser pelo tratamento que nos dão em lugares remotos, independente do delito ou subversão, devemos todos ser tratados por igual, sem preconceito aqui amigo, todos tem o direito de ficar calado, levar a mesma quantidade de pancadas, ter os mesmos tipos de doenças e riscos de infecção generalizada, todos no mesmo nível, incrível, quem dera lá fora no mundo livre fosse assim também, igualdade para todos.

Um senhor jogado as traças em um dos cantos da cela tossia como alguém à tempos pêgo pela pneumonia, misturada em seu pulmão com fumaça de cigarro, mais o visgo que vem da parede onde ele devia ter sua face encostada pelos últimos quinze anos, aquela humidade devia estar encrustada até os ossos do pobre velho, digo pobre pois não sei ao certo o motivo dele estar ali, vai saber quantas crianças ele pode ter mandado mais cedo para o céu na época da guerra ?

Jong era o nome de um chinês que à cada meia hora vinha até mim e batia forte em seu peito magro repetindo seu nome seguido de “XAAAIIIINÁÁÁÁ”, acredito que ele dizia CHINA na pronúncia em inglês, e supus Jong ser seu nome, de qualquer maneira, comecei a chamá-lo de Jong, pra dizer a verdade, nunca o dirigi a palavra, mas em minhas notas mentais, ele era apenas o Jong chinês. Pequeno, sujo, fedor igual ao dos cachorros de rua após uma semana de chuva, seus dentes, os poucos que sobraram, era negros e encrustados como corais do fundo do mar, algo viscoso sempre aparecia em sua língua quando desenrolava à falar, os dentes que tinham melhor disposição lembravam cobre falso enferrujado, com certeza em sua juventude foi enganado e teve seus dentes reais trocados por “puro” ouro, ouro de tolo.

Depois de algum tempo, o qual já era inútil tentar lembrar que existia, alguém em farda verde e mal passada, com um revólver quase enferrujado e botões da camisa necessitando costura, vem até a grade da cela e aponta à minha pessoa, de início o mesmo sorriso de Jong, uma parafernália no lugar dos dentes que lembrava o motor de um Dodge esquecido por vinte anos na rua da casa onde cresci, depois uma expressão séria, a qual dizia claramente que eu estava enrascado.

Fez sinal com os dedos dizendo para me aproximar, abriu a cela com uma mão rápida e precisa enquanto a outra descansava no punho da arma, mesmo acreditando que aquele revólver da segunda guerra recém saído do fundo do mar não iria funcionar, resolvi obedecer, já pensava comigo que deviam ter contactado alguém da minha família do outro lado do mundo disposto à pagar pelo projétil que iria atravessar minha cabeça num muro dos fundos daquela prisão.

Fui levado até uma janela onde me passaram um livro mais antigo que a bíblia sagrada, ordenaram que eu seguisse a sequência de assinaturas na linha em branco abaixo do último infeliz que ali passou, devia por meu nome, assinar, data, local de origem e tive de copiar uns códigos que nem imagino para que serviam.

Terminado o processo, vieram com um saco plástico o qual continha uma mochila surrada com roupas sujas, uma bota mais gasta que a dos soldados no Afeganistão, uma carteira com algumas fotos 3x4 de familiares, amigos e recibos de ônibus, lanchonetes e supermercados, todos usados como agenda telefônica, telefones de mochileiros rabiscados em algum encontro surreal ao redor do mundo. Sem dinheiro, apenas lenço e documento.

Com alguns empurrões fui direcionado à porta da frente, mandam que eu caminhe até o portão principal, alguém aciona e vejo a rua logo ali a frente. Percebo uns urubus à me espreitar, eram na verdade os guardas nas torres de vigia acima do muro, apontando seus brinquedos enferrujados para minha cabeça, nem pense em fazer qualquer retaliação ou gesto obceno, muito perto da liberdade para ameaçar dessa forma. Saio do portão, olho dos dois lados da rua, atravesso, tiro a bota de meus pés, sigo descalço pelas dunas de Nha Trang, vejo o mar lá embaixo. Sento no topo daquela areia mais antiga que o tempo, deixo o corpo e a mente voar por sobre o mar, sem destino, enfim livre.

1 comment:

  1. A viagem ao Vietnã te afetou...hummm... digamos que te "inspirou"... que bom! :-)

    ReplyDelete