Saturday 31 July 2010

Segredos

Guardo aqui dentro o segredo do meu amor, guardo também o segredo do meu desacordo, junto também tem o do desapego e o do endoidecer calado.

Calo para que torne segredo, pois se falasse, segredo não mais o seria, seria sim um boato, caso fosse um sussurrado, demorado é o segredo guardado, à sete chaves daqueles no armário.

Vinha Maria a todo dia, com seus segredos e tormentos, veio José, com seus risos e também o seu mé, foi se João, que sem fósforo ficou sem balão, balão que continha segredos, que não se queimaram e ficaram no chão.

Quantos mais segredos se foram aos céus, não como os de João, que por azar se esparramam pelo chão, mas e os de Cristina, todos bordados nos véus, véus estes levados ao vento, na ciranda de seu firmamento, vai lá sem demora, se enrosca no pé de amora, se finda na curva do vento.

Segredos são só palavras, palavras raras são essas, daquelas que não se houve muito, daquelas que se fala pouco, segredos são mesmo o nada e o tudo, dependendo da hora e do turno.

Segredos são recém nascidos no berço da vida, segredos são monstros dos calabouços, inocente guardado o do berço, terrível, vil, malicioso esse de monstro, cresce com olhos vermelhos e boca de bafo, barba de mentira e chifre de verdade.

Segredos são frutos do pé de manga, segredos são caroços da ameixa seca, um dia foram folhas da macieira, hoje jazem numa garrafa de erva-cidreira, hortelã segredo foi, Jasmim se queixou à mim, segredo não me contam, contai vos eu segredo meu, ao que do outro lado descobriram, do outro lado de meu jardim.

Já não guardo mais segredos, ou ao menos os guardo na seção do esquecimento, lá onde se perdem, lá onde estarão seguros para sempre, continuarão sendo segredos pelo resto da eternidade, e se um dia descobrirem o segredo da eternidade, pobre de mim, que terei segredos de uma infinidade.

Friday 30 July 2010

Eu estou no Brasil

Chego cedo no balcão de check-in da TAM, apesar de alguns anos atrás sentir certo conforto por ser atendido em minha língua nativa, dessa vez não faz tanta diferença, apenas me soa confortável a boa postura portuguesa mas ainda me intriga o uso do gerúndio por atendentes de qualquer instituição.

Com o "jeitinho brasileiro" a moça diz ter conseguido modificar minha poltrona pra um lugar com menos barulho, estava posicionado ao lado da turbina e convenhamos, mais de oito horas de vôo com aquele zumbido não seria fácil, mas o preço da passagem me faria agüentar calado.

Já em pleno ar, ocorre que um casal aparentemente gringo tem seu bebe aos berros, pobre criança que mal sabia onde estava, mas que fez todos ao redor lembrarem com angústia onde cada um de nós estava e estaria sujeito à aturar. Mais uma vez, pelo valor do ticket, eu teria até que cantar nana-neném sorrindo.

Nem todos tem esse pensamento, quando sorrindo ironicamente e falando em forte sotaque brasileiro a vizinha de poltrona diz: "- Puta que o pariu esses gringos hein, bota um remédinho nesse leite que a péste dorme até amanhã!"

A delicadeza brasileira chama atenção de alguns, poucos erguem as sombrancelhas em espanto, alguns até balançam a cabeça afirmativamente, mas o susto veio quando a mãe "gringa" pula nos cabelos da vizinha, falando palavrões em alto e bom português, deixando as comissárias de bordo em posição complicada, pessoas tentavam apartar a briga, foram para o chão (o cinto de segurança não estava conectado naquele momento), o negócio foi digno de vale tudo da televisão.

Após longos minutos de briga alguém conseguiu separar as duas e com o aviso do capitão caso a baderna não parasse, voltaríamos de onde partimos, instalou-se a paz, mas não sem antes colocarem a mulher em um assento bem longe da família supostamente "gringa", ao que acabou sendo aquele lugar do lado da turbina.

O episódio me fez lembrar meu vôo de volta da Alemanha em 2001, quando eu e alguns colegas do trabalho voltávamos de um projeto e conseguimos apenas assentos separados.  Quando vi o sujeito que seria meu vizinho por longas doze horas de viagem, o típico Albert Eistein, fiquei apavorado, logo fiz alguns comentários perjorativos em pleno português ao meu colega que estava algumas fileiras atrás: "-Tomara que esse alemão seja uma excessão e tenha tomado banho!" não contente, continuei: "-Se a gente fuçar essa barba, aposto que até coelho sai!" e por aí foram alguns bons minutos de piadinhas..

Passaram se horas e o tal Eistein havia terminado a leitura do seu Deutsche Welle, vem a comissária de bordo com o jantar, peço minha gororoba em inglês rasgado e o tio "Albert" em pleno alemão. Terminada minha ceia, deixo um pãozinho de lado, ao que vem a chance do cientista maluco perguntar: "- Você já terminou? Posso ficar com seu pãozinho? Se importaria?"
O cara era professor universitário, brasileiro filho de alemães, palestrando em um simpósio na Alemanha. Minha resposta foi um sim com a cabeça. Fiquei ainda por algumas oito horas sem olhar para o lado, de vergonha e por tamanha falta de tato.

Acredito então ser comum em nós brasileiros essa peculiaridade de debochar estrangeiros em nossa língua, o que nos trás ocasiões extremamente delicadas e não tão saudáveis. 

Mas voltando ao vôo atual, eu já me sentia no Brasil em meio aquele barraco. Aproximando se do destino, após a mensagem do capitão sobre temperatura e hora local, os brasileiros natos se revelam e começa um coro lá do fundo: "-EEEEU SOU BRASILEIROOO, COM MUITO ORGULHOOO, COM MUITO AMOOOOR!!!", impossível não entrar na festa, para muitos é a alforria de anos longe da família, de trabalho suado juntando o dinheirinho, é a hora de matar a saudade do feijão com arroz, mas muitos de nós estão mesmo é voltando das férias, do trabalho no exterior pago pela empresa, mas não impede de sentir o patriotismo arrepiar na pele e cantar juntos.

Pouco antes da aterrissagem, um parceiro que conheci na fila do banheiro, filho de Goiás, me interpela e bota seu cartão em meu bolso, lembro da conversa que tive na fila, ele me oferecera ótimas oportunidades lá "no Goiás", bons alqueires por poucos mil reais, disse ele já ter hectares de tantos anos enviando suas economias para o cunhado investir e que Goiás seria o estado emergente nos próximos anos.

Deixo o avião e lá vem mais fila, checagem do passaporte na alfândega. A policial federal encarregada de checar minha brasileidade me olha de cima a baixo, faz cara de quem comeu e não gostou, faz perguntas óbvias e eu não muito pra amigos, pergunto se o problema é a barba? Explico rapidamente que o frio na Europa é extremo naquela época, mesmo sendo 40 graus no Brasil, e ela continua martelando seu computador em busca de meus dados. Sempre imaginei que ao passar na alfândega de nosso país, seria o mais tranquilo dos processos, uma vez que somos naturais dali, o que diverge das muitas vezes que passei por aeroportos ao redor do mundo, mas logo me dou por vencido e aceito que mesmo aqui na minha terra, serei revirado do avesso para poder ter feijão com arroz.

Pelo breve reflexo dos óculos da agente federal, pude ver que ela jogava paciência em seu computador. Nãããão!! Só no Brasil pra isso ser verídico!! Mas fico calado e tenho de me controlar, ela então olha pela enésima vez para meu passaporte e para minha cara e diz: "- É, só a barba mesmo, o resto condiz com sua pessoa." "Obrigado." - penso eu.

Sigo para o hall de retirada das bagagens, nem preciso dizer que não estavam lá, que parte foi extraviada, parte foi danificada, que escuto o segurança no saguão gritando com alguém tentando sair com mala de outro (que deus me perdoe, mas parecia o parceiro Goiâno), e após horas de caos, me vejo em território brasileiro, placas em português, humidade de quase 100% no ar, aquele bafo quente no rosto vindo do asfalto e taxistas enfurecidos e insandecidos me puxando pelo braço.

Ouço uma voz conhecida aos berros em um orelhão próximo, o parceiro Goiâno perguntava à alguém como que podia seu cunhado não ter enviado um táxi depois de tanto dinheiro que lhe havia dado, achando inacreditável tal tratamento com quem ficou fora por longos dez anos. Repetindo o que a voz do outro lado da linha falava, à plenos pulmões tentava entender o que aquilo significava, que seu cunhado já não era mais cunhado à uns bons oito anos. Caiu estatelado no chão. Coisas do Brasil, pensei comigo.

Mais Brasil que o taxista parando no caminho para perguntar qual o caminho para a estação do metrô impossível.
Mais Brasil ainda foi o moleque no semáforo fazendo acrobacia, vem mancando até o carro e num discurso bem rápido e impecável dizia que poderia estar roubando, matando, mas que estava ali pedindo uma ajuda honestamente, que não fumava e que preferia comida do que dinheiro, sua mal formação física o impedia de trabalhar e ir a escola que era longe. Jogo lhe uns trocados pelo sorriso espontâneo e desdentado, e ele sai correndo dando pulos de alegria, engraçado mesmo era ele não mancar. Ao longe grita: "- Ei tio, tem um cigarro aí?"
Tremendamente Brasil são os caras na beira da estrada já no meu caminho para casa, sentados em pedras propositalmente bem posicionadas com placas dizendo "CHAPA", penso como seria explicar tal profissão e sua natureza à um gringo.

Chego em casa e é domingo, mulherada na cozinha preparando o macarrão, o assado e suas saladas, os homens na sala vendo o programa de esporte, todos exatamente como eu havia os deixado alguns anos atrás, e isso me trás um conforto e uma felicidade cômoda. A criançada vem correndo lá do quintal com suas espadas feitas de fiapo de tábua de construção, capacetes de papelão e o cachorro vem junto tropeçando por entre as pernas dos pequenos. Gritam pelo tio, pedem para ajudar arrumar o cabelo das bonecas, pedem pra jogar bola na rua, e acabamos no tapete brincando de fazer montinho. Então eu sinto do fundo do coração que agora sim, eu estou no Brasil.

Mas até lá, fica o sonhar acordado. 

Brasil, ó meu Brasil, tenha se um ou mais reunidos em teu nome, brasileiros ali estarão! 



     

Wednesday 28 July 2010

Pai nosso


A primeira vez que vi meu pai chorando, ao menos à vez em que eu me lembro, foi quando meu avô morreu, Purfírio. Ele não era pai de meu pai e sim seu sogro. O amor entre os dois era de pai pra filho, o tratamento pelo que presenciei desde nascido era esse mesmo, um pai para meu pai, um filho para meu avô.

No dia em que o velho faleceu, meu pai foi até a igreja me avisar, estava prestes à fazer minha 1a comunhão e lá estava eu aprendendo os sacramentos. Senti algo errado ao ver os olhos verdes de meu velho marejados e vermelhos, mas ainda sem uma lágrima.
Naquela noite fiquei em casa, trancado. Não queria ver ninguém e só queria que os dias passassem. Prometi a mim mesmo não chorar, ser forte e também não queria vê-lo em seu funeral, ao que trouxe minha mãe aos berros em meio ao seu pranto.

Sem maneira de contradizer a dona Tere, no outro dia me botam no carro e vou até a casa de meus avós onde se desenrolava o velório. Aceno para os tios, primos, parentes e amigos pelo portão, de cara percebo quem é o piadista da vez, pois velório sem piada, não é velório e dizia que meu avô estaria lá no céu naquele momento gritando truco na orelha de seu compadre Plácido, o famoso Prácidinho que havia falecido à pouco tempo. Entro na sala e vejo ali dentro daquele lugar aparentemente confortável um senhor de semblante calmo, bigode bem aparado, terno bem afeiçoado e suas mãos enrugadas dobradas por sobre a barriga magra.

Forte como prometido, fiquei ali, parado observando aquele que também foi meu pai, que me levou de mãos dadas tantos anos para a escola, para o supermercado, para a banca de jornal e para os butecos do bairro, aquele que me ensinou a jogar baralho e me mostrou algumas regras de futebol, o velho sem muita paciência que me ensinou segredos de marcenaria e que me deixou tantas ferramentas de herança. E nenhuma lágrima minha escorria. E então vejo meu pai na porta, sozinho em suas lágrimas, meu super-herói derrotado... e então minha força também se foi.

Da sala se ouvia o choro inconsolável de minha avó que vinha do quintal, amparada por suas irmãs. O ritmo de minhas lágrimas aumentavam de acordo com aquela tristeza, e ela me dizia: "- O vô se foi fio, o vô se foi, e agora ?" "Agora" perguntava eu em pensamentos, ao procurar consolo em meu velho, só achava os olhos verdes afundados naquele mar de lágrimas.

Anos se passaram, o conforto de certa maneira veio à todos naturalmente, ainda penso muito em meu avô e em seus ensinamentos, trago dele parte de suas implicâncias, também trago um chaveiro que ele pendurava no retrovisor de seu Fusca, uma pequenina faca em miniatura guardada em um coldre de couro, entre outras lembranças.

Chegou então o dia em que fui embora, deixei casa, família e uma vida para trás e botei o pé no mundo atrás de aventuras, naquele dia não me perdoei por mais uma vez trazer meu velho à lona, seus olhos tranquilos e verdes marejaram novamente, deixou ir porém não sem antes me abraçar tão forte que relembrei o motivo pelo qual achava ele ser meu super-herói. Homem bom esse que até hoje não vi igual, alguém que em sua simplicidade, honestidade e tranquilidade faz com que o mundo pareça fácil.

Mas um dia eu falhei, no dia em que o pai de meu pai se foi, eu não estava lá, estava aqui, longe, bem longe. Não nos conhecíamos direito, eu e meu outro avô, coisas difíceis de se explicar em família, mas tivemos pouco contato. Sei que o "seo" Zé Amaro foi alfaiate, dos bons, costurava dia e noite, andava de bicicleta barra-forte, a qual eu e meus primos roubávamos de vez em quando para descer a ladeira de sua casa, nos raros eventos em que nos reuníamos. 

Achava engraçado quando o vô Amaro confundia os nossos nomes e sempre invertia, já era um sinal do tal Alzeheimer. Muitos anos depois, foi também vencido pelo cansaço de suas pálpebras, e eu, eu não estava lá para ver os olhos verdes de meu pai marejados e poder dizer que nesse momento, nesse momento eu seria forte e o abraçaria como um dia ele fez comigo, e diria que tudo iria ficar bem.

Mas não demora pai, eu to voltando.

Friday 23 July 2010

Meu primeiro amor

 
O nome dela era Cibelle.
Eu tinha aproximadamente dez anos de idade e ela, acredito, por volta de quatorze-quinze.
Eu devia estar na 4ª série e estudávamos na mesma escola, ela vivia sentada pelos corredores com suas amigas, jogando conversa fora entre uma risada escancarada e outra.

Nunca à tinha notado, éramos praticamente de mundos diferentes, sua turma nos tratava como se não existíssemos e não fazíamos questão de dar atenção, à não ser quando os caras mais velhos vinham roubar nosso lanche, aí a história era outra, com certeza voltaria pra casa com um olho roxo e com fome.

Engraçado como a vida de alguém aos dez anos de idade parecia ser tão complicada, já existiam naquela época pressões, necessidade de ser aceito numa sociedade (mesmo que fosse a sociedade estudantil juvenil), e o desejo de ser mais velho e poder sacanear com os mais novos.

Até o dia em que ela me parou no corredor. Perguntou meu nome, quantos anos eu tinha, onde eu morava, de repente me deu um beijo na bochecha e saiu gargalhando com as amigas.
Naquele exato momento quase entrei em estado catatônico, não falava, não respirava, não sabia onde eu estava ou para onde ia.

No meio da confusão na classe após o intervalo, com todos querendo saber o que tinha acontecido, acabei descobrindo que uma das meninas da minha classe era prima daquele ser encantado, e o nome dela era Cibelle.

À partir daquele dia comecei a escrever cartas para ela, desde rabiscos sonhadores no caderno até colagens com letras recortadas do jornal, passava horas planejando como ter acesso à máquina de escrever da minha tia para poder datilografar frases singelas, simples mas cheias de amor.

Fui pêgo por minha tia incontáveis vezes furtivamente criando meus poemas em sua máquina de datilografar e aquilo me deixava em apuros, fora a vergonha, sempre fui bem tímido e fechado em relação à meus amores.

Aquele amor platônico durou algum tempo, até ela se formar e ir pro colegial em outro lugar e me deixar pra trás com meus sonhos encantados, já naquela época achava que um homem poderia morrer de amor, à vi pelas ruas, de mãos dadas com outros caras, de sua idade ou mais velhos, usavam calça xadrez com velcro na cintura, jaquetas de motoqueiros e topete ao melhor estilo John Travolta em "Grease", enquanto eu tinha meu cabelo no pior estilo "reco" militar cortado por um amigo do meu avô e ainda calçava sandálias!!!

Meu Deus, sandálias!! Onde minha mãe estava com a cabeça? Aquilo poderia ter me traumatizado pro resto da vida!!Mas superei e hoje ainda aqui estou, mas já não calço mais sandálias...

Passados alguns anos à encontrei, bem ali no meu bairro, já uma mulher, com sua família, trabalhava na loja de materiais elétricos de seu pai, seu corpo já bem robusto pelo parto de três filhos, a saia enorme e os cabelos muito longos resultado de sua mudança de religião, mas apesar de todas as mudanças, aquele rosto ainda era do meu anjo salvador, daquele meu primeiro amor.

E eu? Eu vestia minha jaqueta de motoqueiro, com minha namorada esperando lá fora em minha moto, batendo o pé no chão e perguntando qual a dificuldade em escolher uma lâmpada... 

Thursday 8 July 2010

Do outro lado, depois que escureceu


Acordei de madrugada, devia ser por volta das 4 da manhã, meio frio, sonolento e a rua silênciosa lá fora, um carro ou outro se ouvia lá de longe, provavelmente alguém indo trabalhar com o vidro do carro aberto para espantar o sono, som no último volume e as mãos acompanhando as batidas no volante, sei bem, já fui um deles.

Levanto me como que por um impulso descomunal, vou ao banheiro, lavo o rosto, me acho um pouco mais velho que ontem, os cabelos brancos têm aparecido com mais frequência e noto alguns contornos diferentes no meu rosto. Coloco uma calça jeans qualquer, visto uma camiseta, jogo uma camisa por cima, procuro meu gorro, acho o AllStar, lembro de pegar o Ipod, pronto, já posso sair... mas peraí, pra onde?

Alguns dias atrás tinha lido sobre algumas dicas de fotografia, por algum motivo guardei na memória sobre os melhores horários para se fotografar, na realidade, horários incomuns ou que os preguiçosos não se dispunham, que seria ao alvorecer, ao sair do sol, quando o mundo disperta.

Achei esse o motivo pelo qual me levantei tal hora, mesmo sem ter certeza, resolvi seguir pra estação de trem mais próxima, e ficar lá, vendo o tempo ir. Tirei fotografias mentais por horas, pois não tinha a minha câmera, o que há de errado comigo? Não sei dizer, esqueci o que mais precisava ali.

Mas minhas fotografias mentais eram tão boas e de melhor qualidade que nem me importei, até gravação de voz tinha, cada vez que relembrei uma foto vinha com minha narração dizendo o que eu sentia e o que aquele momento eternizado representava.

Vi gente, senhores de idade sem teto, vi trabalhadores, vi a turma da limpeza, mulheres da noite, homens que não eram da noite mas que à sustentavam. Alguns chegavam já com seus cafés nas mãos, outros se encostavam nos pilares da estação e aproveitavam poucos minutos para um sono inocente, enquanto moleques levavam suas carteiras sem inocência alguma.

Não vi sorrisos, mas vi preocupação nos olhares de quem lia o jornal, não vi gente chegando, talvez por que fosse muito cedo, talvez por que fosse ponto final, talvez mesmo é por que fosse até ponto de partida, mas aí já não saberia dizer, continuo fotografando a vida alheia.

E então surge ela, alguém num vestido negro que não se encaixa na pintura, ou foto, como queira. Anda como se flutuasse, linda, corpo esguio, rosto de pele clara e olhos fundos, cabelos negros esvoaçantes, vem em minha direção e me olha diretamente nos olhos, começa a me doer o coração, tenho palpitação e suador, minhas mãos ficam geladas, sinto tontura e ela então põe a mão no meu ombro.

Foi então que eu morri.
Foi o momento em que eu passei dessa pra melhor, foi quando chorei e a mãe não viu, sem nenhum aviso, só aquela certeza que se tem na vida, que uma hora ela acaba, ali, bem ali onde eu estava, onde sem razão e tão cedo eu cheguei, pra acabar assim, escuridão.


Não teve dor gente, não teve sangue ou acidente, foi rápido e simples, nem sei se virei estatística ou se apareci no noticiário, também não sei qual foi a causa-mortis ou seja lá o que os laudos dizem. Só sei que acabou, cessou, parou, extinguiu, esvaiu, fugiu de mim o ar e não tinha mais com o que respirar ou mesmo motivo para tal.


Fiquei assim por algum tempo, e então por uma outra força descomunal abri os olhos novamente, claridade, vida, barulho, ar, apego e sonolência. Foi tudo um sonho (ou pesadelo).
Bom estar de volta. Mas interessante foi aquela paz do sonho, o simples escurecer sem dor. Ainda é cedo, muito cedo pra isso e espero que todos que se foram tenham tido essa paz ao escurecer.

Ao que me vem ao pensamento agora não é o fato de ter tido um sonho bizarro onde morria, e sim que mesmo morrendo eu estava de viagem marcada, lá na estação, e de trem.