Wednesday 18 May 2011

San Cristobál

Encostado numa árvore à beira de uma rua não pavimentada no bairro de San Cristobál, lá pela Calle 18, travessa da Carrera 7, gasto meu tempo à vê-lo passar. Vejo um bando de meninos chegar em uniforme, muito falantes, sapateando pelas pedras soltas da rua, chutando latas enferrujadas, gritando com as velhas nas janelas, jogando pedras nos cachorros largados e atentando os gatos vadios.

Correm para dentro de suas casas, mais gritos, suas mães tentando os fazer comer algo, televisão falando sozinha num canto da casa, destoando a tarde pacata. Em pouco tempo todos estão de volta, em seus shorts rasgados, camisetas surradas e esburacadas, chinelos de borracha gastos pelas peladas de rua, cada um com um instrumento que me lembrava algo musical.

Buscam pelas latas chutadas e vão formando um círculo, alguns trazem pedaços de madeira velha para se apoiar, outros apenas se deixam largar pelo chão, nem um pouco preocupados pelo córrego a céu aberto que passava numa canaleta improvisada na lateral da rua, como uma sinfonia, cada um faz o preparo de seu instrumento, pequenos violões desafinados, um tambor com couro de cabra, uma gaita surge do bolso de um deles e outro acrescenta algo que não me vem a cabeça o nome, mas que produz algum ruído aquela congregação.

Entre risadas e brincadeiras, tocam sua rumba, tocam suas canções desafinadas e seus hinos infantis, mesmo que em nada se pareça com uma verdadeira música, o efeito sonoro os trás tão bela animação.

Um velho descamba de seus aposentos, acordado de sua ciesta pelo relógio natural da tarde, passa pela cozinha onde a chaleira assobia o café pronto, busca no armário amarrado à parede uma caneca de alumínio com a imagem de Nossa Senhora, acena para sua velha esposa sentada numa cadeira de balanço prendida à seu tricô, e então sai para a rua.

Senta-se numa pedra posta ao lado da parede feita de barro e tijolos velhos, camisa amarrotada, botões a querer pular, calça de um brim bege tanto pela poeira como pela origem, seus pés tinham tantas rachaduras como o árido solo do sertão, seu chinelo feito de um couro curtido já se desfazia como cadáver de algo que já fora vivo um dia, suspira, tira do bolso seus papelotes, um canivete velho sem fio, uma goma de fumo, e começa seu ritual a criar seu momento de paz.

Seu bigode evidenciava o tempo em que fumava, por meus cálculos, mínimo de 40 anos pela mancha amarela naqueles fios brancos envelhecidos, seus olhos gastos pela catarata, num azul marejado e coberto pela névoa branca da idade. Pediu aos meninos que tocassem algo mais apropriado, talvez algo de sua época, algo que o recordasse dos tempos em que era ele ali a buscar por afazeres em sua juventude, do correr descalço pelas vielas esburacadas, à se esconder pelos barracos abandonados, ou pelas lajes proibidas das casas coloridas onde se chegava pendurando-se pela árvore vizinha.

Buscaram nos recônditos de suas memórias algumas canções tocadas por seus avôs e forçaram algumas notas goela abaixo, satisfez o velho com seu cigarro, seu sorriso leve mostrava que já não estava mais ali, estava longe em seu sonho, sonho que continha saias rodadas, comidas picantes, mulheres ardentes, garrafas vazias, tardes na colheita, noites na estrebaria com seu amor às escondidas, farras nos bares da cidade, e uma luz ressaqueada do sol amanhecido.

Um dos meninos chamava pelo velho, pedindo outra canção que pudesse acompanhar, sua resposta era apenas um rosto ligeiramente calmo, olhos fechados tristemente, mas num sorriso tranquilo, seu cigarro jazia pelo chão, seu braço direito caído ao lado do corpo, sua mão esquerda descansada sob a barriga estufada, seu sonho o levara. Se expirou numa tarde de segunda, assim como veio, se foi num piscar dos olhos, atrás das saias rodadas e das garrafas por esvaziar.

Wednesday 11 May 2011

...y se perdió los ideales

Dos bens e dos males de se viajar, da dor infligida na alma e do prazer enraizado ao coração, eis que o pecado se aflora em vias de contramão, paradas em portos sem âncora onde todos desembarcam, mas só o viajante parte.

Estava em um estabelecimento precário, mas cheio de gente com bom coração.

Uma senhora que buscava o título de respeitada, mas que a cinta-liga por debaixo da saia a condenava, um garoto totalmente fora de contexto pela hora e local buscava pela carteira de um senhor cansado e desatento. O dono do bar limpava o balcão com algo que parecia mais um pano de chão, mantinha seus olhos atentos à um grupo que jogava cartas de forma suspeita, em alguns momentos percebia um movimento sorrateiro por baixo da mesa. Algo parecia não estar certo.

Alguém entra batendo a sola do sapato como que trotando pelo piso, brada algo incompreensível, tira de sua jaqueta surrada um revólver enferrujado e balança pelo ar como um helicóptero desvairado.

Hernan, o dono do bar, belisca a ponta de seu bigode, estica os fios revoltados em busca do penteado perfeito, dá um sorriso que move suas gordas bochechas e teatralmente bota sua mão debaixo do balcão.

O cachorro louco abaixa suas mãos, solta um urro, bufa, enche o peito com seus pulmões cheios de ar, e rapidamente volta pelo mesmo caminho por onde veio.

"- Mais um corno.", resmunga alguém próximo à mim, recostado numa parede suja.
"- Muito normal por aqui."

Noto que era um velho, parecia estar dormindo na última vez que havia checado, babava em seu próprio peito, por entre os botões de sua camisa aberta e amarrotada, cabelos meio longos, grisalhos e oleósos, barba por fazer e garrafa quase por acabar ao seu lado, cigarro pendurado na ponta de seus dedos marcados e com suas unhas sujas.

"- Mi nombre es Lopez, señor. Mucho gusto."
"- Encantado." Respondi sem muita empolgação.
"- Sabes que soy un de los ultimos combatentes de verdad por las FARC ? Cuando teníamos ideales ? Cuando nosotros no eramos criminales ?"

Não sabia se dava risada, se corria o mais rápido para fora dali ou se pedia "un ratito" para armar a câmera e começava uma entrevista completa. Resolvi não abusar da sorte, entre um copo e outro, me embriaguei não só pela névoa etílica, mas pelas histórias de um retirante combatente, tão certo de seus ideais que morreria por eles. Como ele me disse, Deus não o deixou ir assim, fez com que sobrevivesse para que pudesse ver a queda de seus heróis, a corrupção de seus companheiros e a tomada da sujeira no lugar de seus hinos criados debaixo de chuva pelas selvas Colombianas.

À mim, não me cabe julgar.

Era ele realmente um sonhador com farta imaginação, ou era ele um autêntico Che Guevara Colombiano, difícil dizer. Foi um bom entretenimento para a primeira de muitas noites por essas bandas. Aquele homem cansado de repente mostrava tanta energia que era difícil pará-lo, se escondia por entre as mesas, fazia gestos como que portando metralhadoras entre a densa selva, mostrava como se feriu por tantas vezes e já estava no final não só de sua bebida mas também de sua sanidade, derrubou-se pela mesa em choro quieto, dizia algo como não ter tido sua família, da dor em ter deixado seus pais e irmãos na juventude e ter ido lutar por eles lá longe, da volta à sua casa após anos e encontrar metade daqueles que havia deixado no passado, e os que sobraram já não se lembravam mais daquele lutador, tampouco lembravam eles de seus ideais.

... o outro lado do ideal, reflexão pessoal:

A mensagem implícita da guerrilha e de todos os conquistadores é o reconhecimento de uma hierarquia pela força, a escravização do povo e tomada de sua vontade pela mesma. Quando não se deixa a população escolher por uma forma de vida, por um lugar, um trabalho e seus hábitos, já estão escravizados.
Não é que as guerrilhas terminavam escravizando toda a gente, ao menos não era o que se propunha desde o início, escravizar a gente era o outro "ideal".

Roubá-la e escravizá-la. Aqui é onde se encontra o que é realmente a guerrilha: uma constante da história humana. Todos os impérios cresceram roubando e escravizando. Porém sobre tudo o que existe, há uma constante da história latino-americana:
Os conquistadores vieram a roubar e escravizar. Os mesmos sequestros se praticaram nos primeiros anos da Conquista. Não ?

Todos os revolucionários obedecem a essa mentalidade dos guerreiros e reproduzem um fenômeno tradicional. O que acontece hoje em dia é apenas uma corrupção da linguagem. Não se diz mais "roubar", se diz "desapropriar", não se diz mais "escravizar" e sim "liberar", não se diz mais "sequestrar" e sim "deter", porém a essa mentalidade de guerreiros se soma a ideologia herdada dos Espanhóis na época da Conquista.

Os ideais se perderam durante os anos, a força jovem daquela banda se corrompeu e usou o discurso antigo para promover sua vida capitalista, aquela mesma vida que antes julgavam errada, se tornaram fiéis à Marx, mas ainda condenando os Marxistas.

Enquanto isso alguns se pegam à sonhar pelos bares socialistas.