Saturday 29 August 2009

Evolução do homem pela ótica da sexta-feira

Sexta-feira à noite, os pais viajaram e levaram com eles os irmãos, casa vazia, sem muito dinheiro no bolso, amigos provavelmente fazendo alguma coisa interessante porém o convite não veio, celular ainda é dádiva pra poucos.
O ano é aproximadamente 1993, uma fase um tanto pesada, depressiva por vontade própria, costumava se trancar no quarto escuro e ouvia algo chamado Type-O Negative, banda gótica e obscura, às vezes escalava até o telhado da casa e ficava observando as pessoas passando na rua, incógnito. Sentia um poder sobre elas, por passar despercebido, todo vestido de preto, nas sombras e com a imaginação em qualquer outro lugar, menos ali.
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Sexta-feira à noite, o ódio pelo mundo à sua volta o atormenta, sai pelas vielas com alguns amigos, vai de bar em bar tomando o que tem de mais barato e mais forte. Esbanja maus-modos, ignora a educação até ali aprendida, acredita que o futuro é só até o próximo show daquela banda de rock favorita e que nada mais importa. Amigos o arrastam para a festa na casa de algum desconhecido - bebida e rock & roll à vontade... depois de "completar o tanque" é hora de pegar uma carona até aquele boteco de cerveja barata onde uma banda tosca cospe músicas em inglês duvidoso, e balançando a cabeça frenéticamente acha que as respostas chegarão naquele frenesi descontrolado em meio à suados e tatuados.
Sua raiva e aflição vão embora, uma liberdade se apodera e dá caminho à um êxtase supremo, algo que dura pelo menos 15 minutos e depois da euforia, a necessidade urgente de um banheiro. Corpo humano não tolera tanto álcool, mesmo para o corpo de um Rock&Rolla.
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Sexta-feira à noite, cansado após um dia inteiro de trabalho, porém com uma disposição felina para sair e aproveitar a noite. Ele faz flexões e alguns exercícios para esquentar e "animar" acompanhado de um copo com whisky e energético. Toma um banho demorado, faz a barba, arrisca uns cremes, abusa do gel no cabelo. Demora séculos escolhendo a camiseta mais descolada, o jeans mais surrado e o tênis mais na moda. Com o celular programa o encontro de no mínimo 15 amigos pra curtir a balada. Sente em si a energia que emana como um deus, tudo é possível e a noite é só uma criança. Como um vampiro passa a noite toda em busca de suas vítimas e teme o nascer do sol, afinal de contas, é o sinal de que tudo irá se acabar e é hora de voltar ao repouso diurno.
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Sexta-feira à noite, vinho aberto, música ambiente, banho tomado e o terno passado. Escolhe o perfume mais elegante ao invés do mais ousado, decide-se pela gravata discreta e pelo cabelo escovado. O tempo já não interfere mais nas decisões, a pressa já não faz mais parte das preliminares e cada segundo é degustado. Confere os tickets para ver a Sinfônica, checa o nome do solista no Cielo e se realmente aquele violinista estará presente. Liga para ela. Encontram-se no hall de entrada e a noite voa em uma sonata, as cordas extraem sentimentos nunca antes despertados, lágrimas correm e uma calmaria invade o ser ali entre uma platéia da realeza.
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Sexta-feira à noite, alguns anos se passaram, e incrível como todos eles se encontram em um mesmo lugar, em Londres na capital inglesa, no mesmo quarto no subúrbio do leste londrino, rodeados por livros nas prateleiras da parede, um piano eletrônico encostado num canto e o abajur no formato de globo terrestre ao lado da cama. O vinho continua aberto como de costume, a música varia entre lounge e jazz, celular já não toca como antigamente, o ódio deu lugar a paz interior mas a energia continua a mesma sem tirar nem por.

Às vezes me assusto com meus "eu's" ao decorrer do tempo, principalmente às sextas-feiras quando os dedos resolvem passear pelo teclado de meu computador...

Sunday 23 August 2009

Crime de Paixão


Alma
: ser independente da matéria e que sobrevive à morte do corpo, que se julga continuar viva após a morte do corpo, podendo o seu destino ser a beatitude celestial ou o tormento eterno. (Wikipedia.org)

Paixão: um sentimento intenso que ofuscaria a razão. (Wikipedia.org)

Não há dinheiro no mundo que compre uma alma gêmea, não há risada suficiente que mude uma opinião, não há beleza inerente que acumule paixão, simples assim, se nasce para o outro e vive-se uma jornada pela vida reconquistando aquela alma, mesmo que dividida em diversos seres, sejam pôres do sol, brisa leve ou chuva no rosto ao entardecer.

Desperte-a com um beijo, olhe nos olhos como se fosse a primeira vez, deixe cair lágrimas de vez em quando, mas que sejam verdadeiras e sinceras.
Se o dia nao foi tão bom, conte um drama mas se foi piada no café da tarde, monte um circo contando a história no jantar. Fantasie sua vida simplória, ou torne a rotina em um conto empolgante. Mas não a invente, a realidade quebrada é traiçoeira.

Uma namorada francesa um dia me contou a história do "Crime Passionel" (Crime de Paixão), que era o nome usado pela defesa em julgamentos na França do século 19 pelo crime cometido por conjuges ao assassinar o esposo ou esposa em casos de adultério. O que eu não sabia é que era uma defesa válida, na maioria dos casos os "assassinos" eram libertados ou pegavam pena de no máximo dois anos enquanto o outro estava abaixo de sete palmos! E acredite ou não, até poucos anos atrás continuava valendo, claro que em off monsieur.

De onde surge veneno esse que enlouquece e faz perder a cabeça, vontade de viver e a própria razão? E faz querer mais e mais de uma fonte inesgotável e gratuita? Juízes e tribunais pelo mundo tem mudado o nome do Crime de Paixão por "Insanidade Temporária", pois eles mesmos já sofreram um dia daquilo e sabem que aquela alma atormentada irá sofrer mais pela ausência de sua inspiração do que pelo martírio infringido pelos homens, que nada imposto à partir dali irá piorar ou aumentar sua dor.

Ao terminar com um amor você acaba perdendo metade de si e sua consciência. Como explicar tamanha coisa em razão?
Sem motivo aparente à não ser a separação? Não há lucro, proveito ou vantagem naquilo. Paixão não entra em disciplinas, nao serve como matéria dada, não há matemática que prove resultado tampouco fórmula concreta.
Vem e vai com tanta violência que nem mesmo o mais forte dos estivadores conseguiria suportar.

A dor do amor me pegou diversas vezes nesses meus anos, não demais, mas também não tão pouco que não me ferisse quase de morte. A dor física em minhas entranhas, enxaqueca sem fim, minhas forças se esvaindo como a morte lenta sob um relógio imaginário. Purgatório em vida se é que existe um outro underground.

Imagino o gênio dos grandes mestres, tamanha aflição à dar vida suas obras, enquanto essas nossas pequenas batalhas nos consomem por completo em nossos medíocres dia-a-dia.

Não queira um dia acordar para esse mundo de dor inconsolável em um crime por amor, mantenha a sanidade e serenidade para só se ver o belo, que se chore ao ouvir um canto e que cegue ao ver o amanhecer ou o entardecer em seu esplendor.

Meu desejo é que essa insanidade temporária se transforme num transe que o leve à criar como criado foi Davi por Michelângelo, êxtase profundo, resultado de extremo desconforto do ser, ao invés de caos e destruição do que é belo por natureza.

E apesar dos riscos, considere apaixonar-se pelo menos uma vez na vida...

Tuesday 4 August 2009

Traffic Lights

Minha experiência no Brasil com semáforos nunca foi muito boa, sempre más recordações, sempre alertas na mídia dizendo o quão perigoso era parar em determinados pontos da cidade grande e quantas pessoas perderam suas vidas ao longo dos anos tanto por respeitar o sinal de trânsito como também por desrespeitá-lo.
Uma das cenas mais fortes que já vi num semáforo foi em São Bernardo do Campo, recém chegado do interior com 19 anos de idade e tentando se adaptar aquela agitação do ABC Paulista, parado na fila de carros no sinal vermelho, vejo uma moto parar do lado do primeiro carro na fila, um Jeep Cherokee "zerado" como costumamos dizer no interior, o garupa na moto saca um revólver e bate no vidro da caminhonete, pede ao motorista qualquer coisa de valor, estando eu à 4-5 carros atrás na fila, só pude perceber que o motorista se negou à obedecer: carro blindado.
Quem dera nossos criminosos usassem sua inteligência e "esperteza" para o bem.
Ao perceber que o carro era blindado, o garupa desce e vai ao segundo carro da fila, que era um popular "bem acabado" porém com uma criança no interior, ao tirar o bebê de sua mãe aos gritos, volta ao carro blindado e ameaça matar a criança caso o executivo não o obedecesse, de longe vejo a mão de dentro do Jeep passar carteira, relógio, jóias, radio, bolsa e tudo o que fosse possível para comprar a vida do bebê.
Indignação, impotência e muitos outros adjetivos para incapacidade se passaram por minha cabeça naquela hora, e só restou me o alívio de ver aquela frágil criança viva chorando no meio fio, uma tragédia pior foi evitada e como diz minha avó: "Vão se os anéis, ficam os dedos."
Alguns anos depois, li em José Saramago a descrição de um homem parado no semáforo, enquanto todos os outros buzinam para que arranque e ele só responde: - Estou cego!
"os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angústia." retirado do "Ensaio sobre a Cegueira" - José Saramago
Esse é um dos primeiros parágrafos de um livro que mostra à que ponto chega o ser humano em uma situação caótica, que por tão forte e convincente demonstração de que sem sombra de dúvida aquela literatura se tornaria verídica num caso real, deixou essa marca em minha pessoa como um acaso triste de semáforo, afortunadamente apenas na ficção do velho escritor Português.
O terceiro evento em um semáforo está bem fresco em minha memória, aconteceu hoje cedo, do outro lado do mundo, bem aqui em Londres, no bairro onde moro.Parado no meio da rua estava um carro simples, de cor azul mas irrelevante a marca, também por que não à levei em conta, o fato é que estava lá, parado quando o sinal já estava no verde, carros buzinavam atrás e quando cheguei naquele ponto com minha moto, ele, o sinal, já havia fechado novamente. Percebi que o motorista do carro de trás havia descido e foi checar o motivo da greve adiante.
Percebo que o tal ao olhar dentro do carro, saca de seu celular e com certo desespero tenta abrir o carro parado ao mesmo tempo que disca algo em seu telefone.Paro ao lado, respeitando o sinal vermelho e olho também dentro do carro por curiosidade, imaginando algum novato no volante que para minha surpresa era uma mulher entre seus 30-40 anos de idade, estática, caída de lado segura pelo cinto de segurança e com olhos parados como se estivessem me questionando, ela olhava exatamente na direção onde eu estava, mirava me os olhos, como se enxergasse minha alma.
Nesse momento alguém tenta abrir a porta do passageiro, todas trancadas. Alguém grita que os paramédicos estão à caminho, naquela mesma avenida tem um hospital, mesmo assim me dói ver que a mulher está lá, provavelmente sem ouvir a buzina dos apressados, poderia ter sido um ataque cardíaco, alguma daquelas veias que bombeiam sangue ao coração pode ter entupido e penso o quão aquele cinto de segurança tem ajudado a agravar a situação à cada segundo que passa.
Não penso duas vezes, tiro meu capacete, boto em meu ombro e quebro o vidro do passageiro. Ouço gritos de desaprovação, alguém diz para não mexer no "corpo", outro fala que serei preso por algum tipo de atentado ao bem alheio.Na minha cabeça de analista de sistemas, me vem o seguinte fluxograma:
- Abrir a porta para entrar o ar;
- Apoiar a cabeça e o tronco da pessoa e soltar o cinto de segurança ;
- Checar respiração, colocá-la em posição horizontal e começar massagem cardíaca.

Quando estava prestes a pedir ajuda para deitá-la o resgate chegou com a equipe de paramédicos, prontamente entreguei a situação aos profissionais e esperei o resultado, ninguém mais buzinava mas ainda ouvia desaprovação aos meus atos.

Em poucos segundos ela foi conduzida de maca à ambulância, um dos paramédicos voltou e agradeceu pelo suporte dizendo que minha atitude pode ter sido fundamental no salvamento de uma vida. Pergunto se ela vai ficar bem, ele me passa o telefone de onde estão à caminho e um código para checagem, visto que ainda não sabíamos a identidade da mulher.

Algumas horas atrás sem conseguir pensar em outra coisa, ligo e recebo a notícia de que Rose Parker Smithson está se recuperando daquilo que foi diagnosticado como AVC de baixo nível, o que significa que ela não terá nenhuma sequela e possivelmente viverá uma vida normal daqui para a frente.

O paramédico disse para eu não me preocupar que o governo vai pagar o vidro do carro que eu quebrei =)

Sunday 2 August 2009

A cidade sombria


Londres roubou minha alma, destitui me da vontade própria, sugou qualquer resquício de humanidade que outrora restava dentro de mim. She whispers in my ear:"I want you so bad..." e como em um transe sob sussuro vampiro, deixo levar pela névoa do amanhecer caótico da megalópole.
A cidade tem vida própria, não é jovem e castiga os homens que a cada dia cravam mais e mais feridas em seu solo, cicatrizes para o sempre, ela não dorme e cobra um preço alto pelos seus serviços.
Os corpos vazios e sem vontade vagam por entre vielas dia e noite, criaturas tomadas de seus habitats e abduzidas pelo fósforo das lâmpadas incadescentes, transeuntes com pensamentos obscuros à minha volta, smells like old spirit, smells like cheap vodka and cigarettes.
Vejo personagens dos meus piores pesadelos se tornarem realidade, eles se aproximam, famigerados, te cheiram, te questionam, empurram, puxam, gritos silenciosos que fazem doer a cabeça, o estômago revira, sem saída e o metrô já fechou. Corre, pega o ônibus, terríveis night-buses, o sanatório lá no final da radial leste parece até matinê no cinema se comparado com os indivíduos que ali se aglomeram, um achou que esbarrou e solta "sorry mate", outro que não foi esbarrado larga "what's wrong with you geezer?", a menina moça no fundão berra: "quebra a cara dele!*"(*tradução livre para dar ênfase), o busker resolve dar uma palhinha, mesmo tendo seus tendões inflamados por tocar 12 horas incessantes em Picadilly Circus, nem Bob Marley apazigua tamanho ego...
Bus driver ameaça parar, executivo que dormia percebe que seus pertences já não o pertencem, o punk ajeita o fone de ouvido e retoma sua meditação, o casal percebe que a oportunidade era boa e agora é arriscar demais, a senhora com o carrinho de feira não sabe o que está fazendo ali, o pastor de uma igreja duvidosa muito menos, alguém me dá tapinhas no ombro e pergunta: "esse vai para Wood Green, lá pro norte?" respondo: "Sim, claro"
Moro no sul, e até agora estou tentando entender se respondi de sacanagem, se foi por pura despretensão ou completa ignorância da verdade.
Os primeiros raios de luz se mostram, meus olhos desacostumados começam a doer, preciso chegar logo, a cripta me aguarda, o sarcófago é meu refúgio, o cheiro do antigo e do embolorado me fazem falta, minha pele aquosa teme a luz que está por vir e o estômago continua revirando.
Meu ponto de ônibus.
Preciso pedir peloamordedeus para que o mano em um conjunto de moleton e boné virado dê um passo para o lado e me deixe passar, preciso disputar a porta do ônibus com o senhor que quer entrar por ali também, um sujeito idoso que está à caminho da feira, o motorista começa a movimentar o ônibus, com uma capoeira me esquivo do mano, deslizo pela lateral da porta onde o senhor está praguejando seu reumatismo inconsolável.
Alcanço minha rua, abro minha porta, tiro o sapato, subo as escadas, o sol começa a tomar conta da escada, preciso ser rápido, meu quarto...
At least safe and sound, prometo à mim mesmo que nunca mais vou beber...
... pelo menos até o próximo final de semana.