Thursday 8 July 2010

Do outro lado, depois que escureceu


Acordei de madrugada, devia ser por volta das 4 da manhã, meio frio, sonolento e a rua silênciosa lá fora, um carro ou outro se ouvia lá de longe, provavelmente alguém indo trabalhar com o vidro do carro aberto para espantar o sono, som no último volume e as mãos acompanhando as batidas no volante, sei bem, já fui um deles.

Levanto me como que por um impulso descomunal, vou ao banheiro, lavo o rosto, me acho um pouco mais velho que ontem, os cabelos brancos têm aparecido com mais frequência e noto alguns contornos diferentes no meu rosto. Coloco uma calça jeans qualquer, visto uma camiseta, jogo uma camisa por cima, procuro meu gorro, acho o AllStar, lembro de pegar o Ipod, pronto, já posso sair... mas peraí, pra onde?

Alguns dias atrás tinha lido sobre algumas dicas de fotografia, por algum motivo guardei na memória sobre os melhores horários para se fotografar, na realidade, horários incomuns ou que os preguiçosos não se dispunham, que seria ao alvorecer, ao sair do sol, quando o mundo disperta.

Achei esse o motivo pelo qual me levantei tal hora, mesmo sem ter certeza, resolvi seguir pra estação de trem mais próxima, e ficar lá, vendo o tempo ir. Tirei fotografias mentais por horas, pois não tinha a minha câmera, o que há de errado comigo? Não sei dizer, esqueci o que mais precisava ali.

Mas minhas fotografias mentais eram tão boas e de melhor qualidade que nem me importei, até gravação de voz tinha, cada vez que relembrei uma foto vinha com minha narração dizendo o que eu sentia e o que aquele momento eternizado representava.

Vi gente, senhores de idade sem teto, vi trabalhadores, vi a turma da limpeza, mulheres da noite, homens que não eram da noite mas que à sustentavam. Alguns chegavam já com seus cafés nas mãos, outros se encostavam nos pilares da estação e aproveitavam poucos minutos para um sono inocente, enquanto moleques levavam suas carteiras sem inocência alguma.

Não vi sorrisos, mas vi preocupação nos olhares de quem lia o jornal, não vi gente chegando, talvez por que fosse muito cedo, talvez por que fosse ponto final, talvez mesmo é por que fosse até ponto de partida, mas aí já não saberia dizer, continuo fotografando a vida alheia.

E então surge ela, alguém num vestido negro que não se encaixa na pintura, ou foto, como queira. Anda como se flutuasse, linda, corpo esguio, rosto de pele clara e olhos fundos, cabelos negros esvoaçantes, vem em minha direção e me olha diretamente nos olhos, começa a me doer o coração, tenho palpitação e suador, minhas mãos ficam geladas, sinto tontura e ela então põe a mão no meu ombro.

Foi então que eu morri.
Foi o momento em que eu passei dessa pra melhor, foi quando chorei e a mãe não viu, sem nenhum aviso, só aquela certeza que se tem na vida, que uma hora ela acaba, ali, bem ali onde eu estava, onde sem razão e tão cedo eu cheguei, pra acabar assim, escuridão.


Não teve dor gente, não teve sangue ou acidente, foi rápido e simples, nem sei se virei estatística ou se apareci no noticiário, também não sei qual foi a causa-mortis ou seja lá o que os laudos dizem. Só sei que acabou, cessou, parou, extinguiu, esvaiu, fugiu de mim o ar e não tinha mais com o que respirar ou mesmo motivo para tal.


Fiquei assim por algum tempo, e então por uma outra força descomunal abri os olhos novamente, claridade, vida, barulho, ar, apego e sonolência. Foi tudo um sonho (ou pesadelo).
Bom estar de volta. Mas interessante foi aquela paz do sonho, o simples escurecer sem dor. Ainda é cedo, muito cedo pra isso e espero que todos que se foram tenham tido essa paz ao escurecer.

Ao que me vem ao pensamento agora não é o fato de ter tido um sonho bizarro onde morria, e sim que mesmo morrendo eu estava de viagem marcada, lá na estação, e de trem.

3 comments:

  1. O título desse seu texto poderia ser "A morte de um flaneur". Legal!

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  2. Cris, esse texto foi uma verdadeira "viagem"!! :-x

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  3. Cris, perfeito esse seu texto.... Adoro ler o que você escreve... Devia fazê-lo com mais frequencia. Independentemente disto... Acho que o mais curioso não é o dormir eterno ou o despertar, é o que iremos encontrar depois de embarcarmos...

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