Thursday 11 November 2010

Privação do ser

A estrada para o sucesso às vezes percorre misteriosos caminhos. Hoje a tarde fui chamado de "Brasileiro misterioso" por pessoas que conheci em minhas viagens e não misteriosamente digo com convicção que atingi o sucesso de minhas metas de médio prazo sem muito mistério. Complicado conectar tudo isso que acabei de escrever ? Imagina viver tudo isso então.

O sucesso nem sempre é aquilo que se explica no dicionário e o que as pessoas possuem em mente, a palavra sucesso pode ser reinventada e colocada de uma forma menos política ou corporativa, a palavra sucesso pode ser taxada como algo que preenche a alma, aquele gosto de água doce na boca de quem foi náufrago em águas salgadas por meses, quem sabe até anos.

Foram alguns anos de minha vida que dediquei à privação de certas coisas para chegar à determinado lugar, aprendi isso com tantas pessoas que difícil é citar tais exemplos, o mais próximo é meu pai, que por um bom tempo trabalhando fora para nos sustentar tinha de ir dormir mais cedo para esquecer a fome e economizar o dinheiro do jantar. 

Comecei a trabalhar bem cedo, por opção e não necessidade, não havia necessidade pois meus pais trabalhavam para nos dar sustento e educação, bem rigorosa mas que deu base para os anos que vieram, e desde cedo aprendi o valor do dinheiro e também aprendi o valor que o dinheiro não tem, se é que você me entende. O valor que as coisas materiais perdem depois de sua empolgação, depois do sentimento de que você conquistou e está ali a seu dispor, seja na garagem, na sala de estar ou na cozinha.

Bem cedo aprendi também que mesmo tendo tudo, às vezes não temos nada, um carro sem seguro pode sumir entre seus dedos se acidentado ou roubado, mas sua vida ainda estará lá independente de dinheiro ou seguro. Não sou hippie apesar de respeitar a opinião de quem é, não prego que a vida só é válida se minimalista, o dinheiro é importante, o capitalismo faz o mundo girar, pelo menos no lugar em que nascemos e somos acostumados, dependemos da troca do papel e da moeda pelo nosso sustento por que já não temos como caçar e pescar, necessitamos de dinheiro por que no futuro o médico vai ser caro, já nos esquecemos dos curandeiros e seus chás e dependemos quase sempre de enlatados, então não confunda as coisas, não semeie sonhos criativos de vida perfeita em comunidade numa vila de pescadores, uma dor de dente vai fazer você voltar à civilização num piscar de olhos.

E nunca, nunca julgue aquele que trabalha e estuda sem parar com extremismo, pois aquele tem suas razões ramificadas em seu ser, queimadas a ferro e fogo em sua pele pela visão crua do mundo ao seu redor, pois ele já está cansado de ver a vida de seu próximo ser tomada pela necessidade e desamparo que a vida moderna trás consigo. 

Nesses dias que venho passando tento justificar à mim mesmo o motivo pelo qual tenho sido tão agraciado com uma vida que todo ser humano gostaria de ter, viajar pelo mundo, experimentar novas culturas, conhecer novas pessoas, ter novas paixões e amores, acordar naturalmente com a luz do sol pela janela de uma cabana à beira-mar, não ter hora nem compromisso, ler e escrever quando me dá vontade, resumindo, tento achar justificativa por ser feliz agora.

Mas e quando eu estava lá no exército das 6 às 8 da manhã, indo direto pro trabalho que teria de ter começado às 8 e que compensava o atraso na hora do almoço, para então sair às 6 da tarde e chegar no colégio à tempo da primeira aula, rezando conseguir uma carona no final das aulas para chegar em casa às 11 da noite, caso contrário seria quase uma hora à pé ? Tendo de engolir a comida para sobrar tempo de ver um pouco de TV, engraxar o coturno e me barbear para às 4:30 da manhã pegar o ônibus para o quartel ? Por que naquela época eu não procurava justificativa para os sofrimentos ? Quando minha mãe me acordava de madrugada no sofá adormecido com o coturno em meu colo, por que eu não me justificava ou pedia desculpa pelo meu sofrimento ?  E quanto à úlcera que tive nesse meio tempo com apenas 19 anos de idade ? 

Por que então depois do exército resolvi ir trabalhar em outra cidade, e continuar por alguns anos aquele martírio de acordar ainda mais cedo, indo dormir ainda mais tarde porque escolhi uma profissão diferente da que exercia e dependia de mais estudo ?

Também não tentei me justificar quando decidi voltar e fazer faculdade, sem emprego mas com determinação e ter de economizar cada centavo para pagar a mensalidade, depois de formado quando era hora de ter paciência e então começar a criar raízes mais uma vez me coloquei numa posição nem um pouco confortável.

Foi em Londres uma das experiências mais pesadas em minha vida, mais uma vez por vontade própria, me deprivei de meu ser, de quem eu era, para me tornar o que sou hoje, alguém que queria aprender mais, alcançar ainda mais e chegar onde poucos chegaram. O preço foi alto, anos de reclusão longe da família e amigos, economia exagerada, frio, depressão, falta de calor humano e carinho verdadeiro, carga horária de trabalho exagerada e irresponsável, horas de estudos insuportáveis e a perda de meu humor característico.

Mas tudo valeu à pena. Nesses longos anos também existiram tempos de paz e felicidade que ficaram mais fortes na memória apesar de mais escassos, devido à toda essa privação os resultados foram gratificantes, recompensantes e que hoje tem me proporcionado muito mais do que eu desejava no começo, hoje possuo coisas que nenhum governo pode me tirar, que a falta de dinheiro tampouco irá me preocupar e que derrubou toda e qualquer fronteira desse mundo.

Acredito que estou empatado agora, depois do vendaval veio a bonança, depois do inferno o paraíso, agora é tratar de planejar os próximos passos pros próximos 10 anos, e dessa vez, o que vier será mais fácil e se não for, não será novidade e se for novidade, que não só eu mas você também tenha saúde para enfrentar de cabeça erguida lembrando que no fim do arco-íris existe um pote de ouro.

Nessa tarde me chamaram de "Brasileiro misterioso" quando contei grande parte dessa história para uma roda de amigos, todos irlandeses e que diziam não acreditar eu ser Brasileiro pelo meu sotaque irlandês, depois de um mês viajando entre eles absorvi a conversação e suas particularidades assim como eu fazia no passado quando passava minhas férias no sítio e mudava constantemente meu palavreado entre o caipira e o menino da cidade, esse foi um dos resultados de minha longa jornada, mas deixei bem claro ser Brasileiro sim, com muito orgulho, com muito amor e que não desiste nunca, mesmo que tenha de me privar de vez em quando.

1 comment:

  1. Fala maninho, fantástico seu texto!
    É muito legal ver este momento seu de colheita do que foi plantado lá atrás. Esta é a vida, não existe uma fórmula mágica ou receita única para ser feliz. E saber passar pelos dias dificeis talvez seja umas das características marcantes daqueles que conseguem colher os frutos!
    Abraço!
    Juscelino

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