Wednesday, 4 August 2010

O Alladin lusitano


Acordei com a luz do sol, meus olhos ardiam como se tivesse pimenta soprada, procurei a garrafa d'água ao lado da cama e esbarrei num litro de vinho, o típico "do Porto", já quase vazio da noite anterior e provavelmente cheio de ar e diálogos intelectuais da mesa do jantar.

A prioridade da semana foi pão e vinho, como fora a de Marcelino (o do "pão e vinho"), a água foi esquecida e fui obrigado a enfiar a cabeça debaixo da torneira no banheiro para aplacar a sede. Não sei dizer se o gosto ruim foi da água encanada ou mesmo do cabo de guarda-chuva da ressaca.

Apesar de ser muito cedo, algo em torno das nove da manhã, já suava em bicas com aquele calor português, resultado também da culinária excepcional e acalorada dessa terra. Tomo meu banho, não acho coragem para fazer a barba e apenas visto minha camisa meio surrada, minhas havaianas e uma bermuda daquelas confortáveis para poder bater perna pelas redondezas.

Não sou muito bem recebido pelo gajo recepcionista do hostel, imagino que sua postura se deve aos meus brados durante a noite anterior em seu pátio, eloquente como todo bom bebedor de vinho, havia discutido desde nossa independência até a política atual, passando brevemente por críticas as novelas enlatadas trazidas aqui de bom coração.

Não meio sem jeito, tento ignorar o olhar fulminante do sujeito, faço um aceno com a mão e saio pela viela rumo às ladeiras portuárias, entro numa padaria e peço meu capuccino, se possível num copo descartável para que não interrompesse minhas andanças.
Sigo caminho e paro de propósito nas escadarias da igreja de São Ildefonso, bonita e antiga igreja com suas paredes forradas de azulejos pintados, todas pinturas em azul, um dos cartões postais da cidade do Porto.

Fico ali sentado por longos minutos vendo a vida passar e pela vida também passavam zumbis, "-são iguais em todo lugar do mundo." penso comigo, aquelas pessoas tomadas pela rotina da estafa, onde o limite é quase sempre a sexta-feira, um pouco mais e eles caem duros no chão, sem vida, sem razão e sem sentir o gosto do mundo. Passam voando por meus olhos, tento me entreter achando familiaridade entre brasileiros e portugueses, quase tudo a mesma coisa, à parte do jeito meio torto de pensar português, que nos trouxe tantas piadas e histórias cômicas.

Uma senhora pára em minha frente e despeja algumas moedas de euro em meu copo de capuccino, diz "- Que Deus me abençoe, que eu tenha mais sorte na vida e que um dia eu saia daquela situação." por algum momento eu procuro achar o motivo daquilo, será que ela tinha lido meus pensamentos e queria mesmo era que eu sumisse dali com o dinheiro do ônibus? Tentou ela sabotar meu café para que eu tomasse meu rumo? Ou seria mesmo uma esmola e ela achando que eu fosse um mendigo tentou dar uma força e um empurrão naquela vida bandida? Fiquei com a última opção. Sem tempo de achar a velhinha na multidão e explicar que não era nada daquilo, que apenas tive uma noite regada à álcool, fui tirado de meus pensamentos por um menino do alto de seus oito-nove anos de idade. 

"- Ei, você está atrapalhando meus negócios, aquela senhora sempre me dá essas moedas que você ganhou. As moedas são minhas, poderia me devolver?"
Não pensei duas vezes e passei lhe o copo, ele olhou com uma cara fechada e aparentando nojo, não tinha muito o que eu fazer, ele sobe as escadarias da igreja correndo e volta logo em seguida brincado com as moedas limpas e brilhantes.
Perguntei o que ele tinha feito, se havia pêgo algum pano para enxugar as moedas e tirar o café, ele então respondeu que as lavou numa piazinha na entrada da igreja e secou com um pano que achou no altar. A pia nada mais era do que a pia da água benta e o pano no altar já se pode imaginar. "- Os portugueses são portugueses desde pequenininhos", pensei comigo.

Alberto - era o nome dele quando perguntei, também me dissera que pedia dinheiro pois precisava ajudar em casa, mesmo sendo filho único passava aperto com a mãe dona de casa e seu pai bêbado, que durante o dia descia o braço no menino se ficasse muito tempo dentro de casa, a escola era uma alternativa cara e distante em seus pensamentos. Apesar de arredio como todo menino de sua idade pode ser, Alberto me espantou por sua curiosidade e carisma, queria saber de onde vim, quem era, o que fazia e por quê eu falava engraçado.

Passei algum tempo matando sua curiosidade e contando algumas histórias do além mar, ele então me disse que a única coisa que lembrava da escola e que ele gostava, era a hora em que a professora contava estórias, dizia que naquela hora ele viajava longe, via lugares em sua imaginação que o permitia esquecer as surras e privações.

Comecei então a contar a estória de Alladin e o gênio da lâmpada, mas não entrava em sua cabeça a figura daquele povo com seus turbantes e tapetes voadores, me pedia para descrever tais personagens como se fossem alguém de sua vizinhança. Disse que Alladin era praticamente como ele, enrolei em sua cabeça uma blusa de moletom que tinha comigo, perguntei se conhecia algum tio gordo em que pudéssemos basear a figura do gênio, ao que lhe vem o seu Manoel lá da padaria.

"- Manoel? Ah não, tenta um outro nome, não podemos contar a estória de Alladin com um gênio chamado Manoel!" 

Me vem então com "Simeão", o dono do butequim onde seu pai tinha conta que nunca pagava, homem robusto, avental sempre sujo de sangue por conta do matadouro clandestino nos fundos de seu bar, lápis enfiado por cima da orelha como provando-se português dos bons. Semeão então virou nosso gênio, aquele que aparecia quando tinha sua lâmpada, ou garrafa, esfregada por Alladin. Chamo a lâmpada mágica de garrafa por que também foi difícil fazer Alberto imaginar uma lâmpada como a que conhecemos, à ele só vinha a cabeça a lâmpada que nos ilumina a sala, cozinha, quarto e banheiro.

Expliquei que na estória de Alladin, ele tinha apenas três desejos prometidos pelo gênio da "garrafa", e que caso Alladin fizesse pedidos mesquinhos, o resultado seria ter seus pedidos atendidos de forma maléfica ou que trouxesse infortunio pra quem os pediu, sendo praticamente o inverso do que ele queria, sendo assim, avisei caso um dia ele - Alberto - encontrasse também uma "garrafa" encantada, que fizesse seus pedidos sabiamente, pra evitar o pior.  

Quando terminei meu conto em grande parte inventado, tentei saber se Alberto havia entendido e sacado o fundo moral da coisa, ao que o garoto me responde que a vida ali não é tão diferente do que nas Arábias, seu pai era também um Alladin, o qual encontrou sua garrafa mágica no botequim do seu Simeão, o qual provavelmente era o gênio à quem concedia tantos pedidos, como as porções de pescada frita, costelinhas de porco e a cachaça para acompanhar, que é claro, vinha sem parar de sua garrafa mágica, mesmo sem ter de esfregar.

Não tive muito o que argumentar com o garoto, mas disse que ele poderia sim ser o Alladin dali também, mas que procurasse a magia numa garrafa de leite na padaria, e que apesar da minha relutância, que o seu Manoel fosse o gênio, quem sabe o gordo padeiro não seja um descendente dos Árabes e Mouros que estiveram ali por tanto tempo ?

Disse adeus e saí em busca do seu Simeão, quem sabe ele poderia me atender alguns pedidos também do alto de seu palácio lusitano e me deixasse descansar em seu tapete mágico... 

3 comments:

  1. E aí, cara, continua na flaneurie hein? Rendendo boas histórias!

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  2. Oi, Cris!!!
    Como sempre, seu blog aí, me entretendo com boas histórias de se ler e de se contar, rs.
    Te convido a dar uma passadinha no meu...
    Esta tarde eu trabalhei à beça nele para colocar novidades...
    Se puder recomendar aos seus amigos, eu agradeço!
    Muitos beijos e abraços!

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  3. Ai, Criz!

    Tava com saudade do seu quintal...

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