Sunday, 27 March 2011

Sampa

Fácil é colocar letras numa tela em branco, ou num caderno vazio, difícil mesmo é olhar para um muro tosco ou num prédio recém demolido e traduzir aquilo tudo em palavras, ver o cansaço em um rosto e enxergar a indescência por trás daquilo, ouvir o eco da madrugada e resumi-lo num ponto final.

Tiro uma cerveja da geladeira, sigo à passos lentos até a varanda, o conglomerado de apartamentos ao redor suprime o sol e a visão da rua, o silvo do vento por entre o concreto trás lembranças remotas de uma São Paulo de minha infância, onde quando falavam da capital em casa tudo o que me vinha à mente era o congestionamento, o calor intenso, os arranha-céus caindo aos pedaços no centro velho e a sujeira do ser humano transeunte das praças públicas.

Não me contento com aquela visão, meia volta volver e estou em direção à janela da sala, encosto no parapeito, lentamente sigo toda a linha do horizonte, devagar, sem pressa alguma. Fecho os olhos por um instante e estou de volta à janela da cozinha do meu apartamento em Londres, com a sutil diferença em que nessa recordação estou enrolado até o pescoço com meu edredon, caneca de café fervendo em mãos e olhar de nostalgia mirando o branco do lado de fora da casa, toda aquela neve, frio e eu perdido em pensamentos.

Abro os olhos e de volta à São Paulo, copo americano cheio de cerveja com o colarinho espumando, calor infernal e apenas um short daqueles que jogamos "pelada" na rua para cobrir minhas partes, passo a mão pelo meu rosto e lembro que amanhã é dia de trabalhar de novo, preciso fazer a barba e pentear o cabelo. Do alto de minha atual janela vejo varandas e pessoas concentradas em seus afazeres, o doce prazer da vida simples, uma senhora rega suas plantas e imagino sua conversa com as únicas companheiras que tem, com as roupas penduradas no varal logo ao lado posso dizer com precisão que vive sozinha, talvez viúva, talvez divorciada, solitária com certeza.

Alguns prédios à esquerda e dois rapazes conversam fervorosamente em suas camisetas de time, sentados numa daquelas mesas plásticas de boteco, cores e emblemas diferentes, um milagre estarem tão passíveis numa conversa em plena São Paulo de fanáticos futebolísticos, um andar abaixo e um senhor de idade passa um bom tempo entusiasmado com seu jornal e uma caneta em punho, seria um caça-palavras, palavras-cruzadas ou talvez buscando por um emprego nos classificados ? Poderia apresentá-lo à senhora das plantas no prédio vizinho, why not ?

Meus olhos percorrem cada centrímetro à minha frente, vendo tudo mas ao mesmo não prestando atenção à nada, apenas um registro pobre da vida comum. Um casal briga na sacada de seu apartamento, ele aos berros do lado de fora e ela pela janela, visivelmente lavando à louça, retrucando grunhidos e talvez até mágoas reprimidas, é meus caros, vida à dois não é fácil.

Entre prédios posso ver um estacionamento lá atrás, grande, carros de todo tipo estão lá parados no sol, um garoto de bermuda e camiseta cavada passa entre os carros, pára em frente uma Mercedes e com as duas mãos em concha se pôe a observar dentro do carro pelo pára-brisas, busca no bolso de sua bermuda alguma coisa e tira um molho de chaves, entra, o alarme dispara, alguns segundos se passam e então o som estridente do alarme cessa, os faróis se acendem, segundos depois se apagam, o menino então reclina o banco do motorista ao máximo, como se fosse uma cama, bota as mãos atrás da cabeça como se fosse tirar um cochilo e então ouço um forte som vindo dessa direção, samba de raiz ligado no último volume dentro do Mercedes. Estaria o ar-condicionado ligado também ? Espero que o cliente do estacionamento não perceba.

Uma garotinha de aproximadamente 7 anos de idade, cabelos claros e cacheados brinca no play do condomínio lá embaixo, sozinha, se diverte empurrando um balanço vazio, nem o seu ursinho de pelúcia à acompanha nessa hora tão necessária. Penso comigo se o senhor das palavras-cruzadas e a senhora que cuida de suas plantas não fariam um bom trio numa tarde de domingo, deixando assim a palavra solidão longe de meu blog nesse momento, a famosa expressão "sentindo se sozinho no meio da multidão" faz bastante sentido nessa hora.

Faço uma última varredura no horizonte, minha cerveja já acabou à algum tempo, hora de voltar à realidade e tirar minha roupa da máquina de lavar, colocar pra secar e procurar algo não saudável na geladeira para me alimentar, num instante vejo um rapaz no prédio da frente com um binóculo olhando diretamente para minha janela, levanto meu copo como que em uma saudação de bar, ao que ele levanta o braço em um aceno de mão sem tirar o binóculo de seus olhos. Acho que Sampa está sozinha nesta tarde de Domingo.

2 comments:

  1. Fiquei tentada a te convidar pra vir embora pra Soro nesses momentos de solidão... mas, já vi que a inspiração vem forte nesses mesmos momentos e, então, obrigada pelo bonito post! :-)

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  2. Lembrei de uma música do Arnaldo Antunes:
    "Atenção: essa vida contém cenas explícitas de tédio nos intervalos da emoção. Quem não gostar que conte outra, encontre, corra atrás, tente invente sua própria versão. Aqui não tem segunda sessão... "

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