Não devia tê-la deixado na esquina fria naquela manhã de primavera em Amsterdã.
Fugir com a francesa naquele dia me pareceu sóbrio e menos insólito que viver aquela fantasia, aquela ilusão montada num palco de um teatro sujo no lado velho da cidade.
Ela, à que deixei na esquina, dizia sonhar com o momento em que minhas canções nasceram, ela queria estar lá quando aconteceu, quem sabe quando acontecesse de novo, mas o coração se ocupou com outras coisas, e as mãos que traziam as canções para este mundo já estavam carinhando a face de outra.
Quantas manhãs como aquela se passaram por entre cobertores naquele prédio sombrio, manhãs que ambos olhavam pela janela abraçados debaixo de um cobertor empoeirado, com nossas xícaras de café olhando por através, vimos os holandeses passarem olhando para o chão, preocupados com suas vidas, na rota de sua prisão privada em busca de sua recompensa. Horas passávamos ali com nossos olhos vagando sem direção, pequenos detalhes, acompanhando pássaros pequenos que pousavam em nosso balcão, e depois de algum tempo, silêncioso tempo, abriamos nossos lábios primeiro para falar sobre as cores dos prédios no outro lado da rua, depois abriamos novamente para então depositar nossas línguas e entrelaçá-las num beijo.
A senhora da padaria na esquina já sabia de nossas escolhas, não que ela pudesse ler nossas mentes, mas talvez por que nos tornamos previsíveis, mesmo deixando os óculos escuros em casa e trocando meu chapéu de camurça não a enganava, éramos nós de novo. Aquele parque no caminho para casa, Vondelpark, era perfeito para gastarmos 3, às vezes 4 horas admirando a natureza, não só da vegetação, mas também a natureza humana, bem ali no centro da cidade, aquele lugar se transformou em uma usina de pessoas tentando descobrir o outro lado da moeda, procurando respostas em sua intoxicação do ser, rolando pela grama víamos desde pais e mães de família, escritores, compositores e todo tipo de gente, embriagados pela aura de Amsterdã.
Descíamos pela Van Baerlestraat em direção ao Museumplein, gastávamos mais alguns preciosos minutos observando turistas entrando e saindo dos museus, terminando o trajeto em algum café barato à beira do canal, trocávamos algumas palavras, tentávamos entrar em acordo em relação às cores dos prédios, deixávamos transparecer um pouco de nossa intelectualidade, e então, caíamos em nossa cama para morrer de amor e esperar pelo novo amanhecer.
Percebi que estava envelhecendo quando contei quantos batons dela eu havia estragado deixando mensagens no espelho do banheiro. No início era só prazer, as mensagens faziam com que o dia dela ficasse iluminado, uma vez que ela dizia eu ser a razão do sol em seu semblante, com o tempo, esses pequenos detalhes perderam seu valor, já não compravam desculpas por atraso, já não garantiam o calor debaixo daquele cobertor em frente da janela, até mesmo a xícara de café já não esquentava mais minhas mãos, e nosso respirar juntos já não embaçavam o vidro das manhãs frias.
A inocência se perdeu, o amor se esvaiu, ela se foi sem dali sair, só restou o corpo e aqueles olhos amendoados debaixo de olheiras escuras.
A francesa, nossa vizinha, era pintora assim como Van Gogh, dividíamos as mesmas intimidades, seus gritos de paixão vinham do alto de seu quarto ali do lado, acredito que o professor de piano, italiano, era sua razão. Não que ela tivesse um piano, não por assim dizer, das poucas vezes em que estive ali em assuntos corriqueiros não havia reparado, talvez por seus cachos de cabelos louros me tirarem toda a atenção, assim como seu sotaque delicado. Também vinham junto com essa intimidade os choros, aquele em que sabemos que a pessoa colocou um travesseiro em sua boca para abafar sua agonia.
Até o dia em que vinha cabisbaixo com uma flor em minha mão, pedido de desculpas em troca dos beijos de boa noite, e lá estava ela, a francesa em sua porta. Marie era seu nome, longos cabelos louros cacheados, olhos azuis como uma violeta iluminada em dia de lua cheia, aguados pelo choro, sua boca simples de lábios estreitos tremia de cansaço por tantas horas à fio em pranto, ao olhar a flor foi como se um imã a trouxesse até mim, colocou um de seus braços por sobre meu ombro, segurando me por trás de meu pescoço, próximo à nuca e com sua mão tocou meus lábios, já estavam entorpecidos pelo calor em que se encontravam por aquele momento.
Após poucos segundos que duraram uma eternidade, descobri minha alma dentro daquele corpo pálido e impecável, roubei um pouco de sua juventude e a levei de volta à seu quarto, à deixei com a promessa de voltar um dia, na realidade foram apenas minutos, voltei ao meu apartamento, ela não estava lá, suas roupas também não, apenas uma nota dizendo que estava à caminho de um novo mundo, talvez em busca de um novo amor, caso eu fosse um amor renovável, que eu me encontrasse com ela naquela esquina onde nos conhecemos dia desses, aquela que já esqueci o nome, onde nossas esperanças foram depositadas um no outro, e que como vampiros tiramos pouco à pouco, dia à dia, naqueles canais que Deus tocou e esqueceu por lá.
Achei um último batom em nosso banheiro, escrevi "te amei enquanto duramos, te terei em minha memória enquanto vivermos e além, Ik hou van jou".
Dessa vez ficou escrito em nossa janela, de frente para trás, caso ela viesse à espiar antes de partir. Juntei minhas poucas coisas em uma mala e uma mochila, guardei os imãs de geladeira em minha mochila, virei um porta-retratos de forma em que ela não me visse partir e fui em busca de Marie. Passamos à noite sem menção a Julie, Julie que um dia foi Julie e eu, hoje sou só eu, talvez amanhã Marie e eu, talvez só eu de novo, quem sabe ? Marie concordou em me levar para o sul da França, num pequeno tour pela região vinícola e da boemia Francesa.
Nossas mágoas foram esquecidas à longas doses de vinho, começamos vida nova sob o sol, corremos à colher flores pelos campos que botaram comida em nossa mesa, mas em alguns dias frios e de névoa, me vem a imagem de Julie naquela esquina, à esperar por alguém que já não era eu mesmo.
Gosto de histórias sobre desamores. Penso que assim como amores nascem, amores morrem e é tocante ler quando isso é escrito com beleza. Ah, coloquei seu blog no meu! beijos. Thaís
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